Clube nega irregularidades e diz que recurso obtido por meio de programa da Prefeitura de SP foi usado 'exclusivamente na preservação, conservação e manutenção das áreas tombadas'
Por Malu Mões
O Departamento do Patrimônio Histórico (DPH) da Prefeitura de São Paulo apontou "despesas absolutamente impertinentes" ao rejeitar a prestação de contas do Jockey Club de São Paulo referente ao uso de recursos obtidos por meio de incentivo municipal à preservação e restauração de bens tombados (protegidos como patrimônio).
A informação consta no pedido feito pelo DPH em 14 de outubro para que a Controladoria-Geral do Município (CGM) instaurasse auditoria sobre o uso de R$ 61,3 milhões provenientes do subsídio concedido ao clube pela Prefeitura.
A investigação inclui a suspeita de uso do recurso obtido por meio do incentivo público até com ambulâncias para o público em eventos de corridas de cavalo (R$ 37,5 mil), aulas de origami (R$ 1.450) e dez quilos de açúcar (por R$2.394). Pelas regras do programa, segundo a Prefeitura, a verba deveria ser usada em ações como manutenção, restauro, pintura etc.
O Jockey nega irregularidades e aponta que "todas as informações solicitadas (pela Prefeitura) já foram devidamente prestadas" e passaram por auditoria independente. "Os valores foram aplicados exclusivamente na preservação, conservação e manutenção das áreas tombadas ao longo de seis anos."
Acrescenta que "todas as despesas apresentadas estão relacionadas à manutenção do clube" e afirma que "os valores questionados estão sendo corrigidos de acordo com as respectivas notas fiscais".
A CGM, sob a gestão Ricardo Nunes (MDB), instaurou a auditoria em 23 de outubro. Os gastos também são investigados por uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) na Câmara Municipal aberta nesta semana.
Em 2016, o Jockey solicitou subsídio da Prefeitura por meio do programa de Transferência do Direito de Construir (TDC), do DPH, da Secretaria Municipal de Cultura. O Direito de Construir é uma autorização concedida pela Prefeitura às construtoras para erguer prédios mais altos.
Nesse programa, portanto, o Município abre mão da arrecadação e transfere para os donos de imóveis tombados pelo patrimônio histórico o direito de vender essa permissão às construtoras. A ideia é que esses proprietários tenham uma forma de obter verba para preservar o bem de valor histórico.
Desde 2016, o clube recebeu 127 mil m² de potencial construtivo. A entidade arrecadou R$ 61,3 milhões com a venda dos títulos de TDC, segundo registro em cartório.
Em maio, o Jockey solicitou novo subsídio por meio do TDC. Antes de o novo recurso ser repassado, era necessário que o DPH emitisse atestado das condições de preservação, avaliando o estado do bem tombado. Em junho, o departamento fez vistoria no clube e concluiu que não seria possível conceder o atestado "em razão das obras de restauro serem parciais".
"Inclusive, chamou atenção a timidez das obras executadas, se comparadas ao montante até então arrecadado com a TDC, na casa dos R$ 61 milhões", diz documento do DPH enviado à CGM, ao qual o Estadão teve acesso.
A situação fez o departamento solicitar, em e-mail de 14 de julho, a prestação de contas do Jockey, por meio de notas fiscais e detalhamento de despesas com o restauro.
Segundo a Prefeitura, a verba arrecadada com o TDC só pode ser usada na manutenção e no reparo do bem tombado. Ainda conforme a gestão, valores obtidos por meio de outras políticas de incentivo, como a Lei Rouanet (federal), não podem ser aplicados no mesmo projeto. A nota fiscal de um gasto, por exemplo, não pode ser apresentada na prestação de contas de dois programas de subsídios.

Prefeitura destinou recursos ao Jockey devido ao imóvel ser tombado para auxiliar a manutenção e restauração do patrimônio histórico; clube nega irregularidades Foto: Tiago Queiroz/Estadão
O Jockey enviou a prestação de contas em 29 de julho. Foram apresentadas as mesmas notas fiscais, porém, que já haviam sido usadas para prestar contas da Rouanet. O clube recebeu R$ 25,7 milhões do Ministério da Cultura via o programa, segundo informou a pasta.
Todos os documentos - em mais de 10 mil páginas físicas - estão carimbados como serviços prestados por meio da Rouanet. Além disso, há notas fiscais de gastos com restaurantes, bebidas alcoólicas, IPTU, dedetização, corridas de aplicativos, viagens e custos administrativos que não podem ser pagos com a verba da TDC, segundo a gestão municipal. O subsídio do Ministério da Cultura, por sua vez, permite que até 15% da verba obtida seja usada com despesas administrativas.
O DPH descreve as notas fiscais como "despesas absolutamente impertinentes" à documentação solicitada. "Além de não comprovarem a destinação dos recursos auferidos com a venda do potencial construtivo, sinalizam que as parcas obras executadas foram custeadas com recursos da Lei Rouanet", aponta o departamento em informe à CGM.

Jockey Club de São Paulo. Foto: Tiago Queiroz/Estadão
A prestação de contas à Prefeitura é assinada pelo escritório Carollo Arquitetura e Restauro. A empresa diz que foi contratada em janeiro de 2025 apenas "para reunir as documentações que o Jockey e a Elysium (a empresa responsável pelo restauro) forneceram em relatório técnico".
"A Carollo não é responsável pela produção dos documentos. Apenas fizemos o trabalho de reunir as informações que nos foram passadas e protocolar junto ao órgão", declara. A empresa ainda diz ter encerrado a prestação de serviços para o clube por não ter sido paga pelo Jockey - o clube nega haver valores em aberto.
A Elysium é a responsável pelo restauro do Jockey por meio da verba da Rouanet. A empresa, porém, nega restauro envolvendo recursos da Prefeitura. "A Elysium atua exclusiva e integralmente com recursos provenientes da Lei Rouanet. Os recursos mencionados como 'TDC da Prefeitura' não tiveram qualquer intermediação ou gestão por parte da Elysium", informa.
"A empresa nunca apresentou quaisquer notas fiscais à Prefeitura, uma vez que a instância a que deve prestar contas é o Ministério da Cultura. Tampouco autorizou nem compactua, com qualquer apresentação de notas em duplicidade", afirma a companhia.
O Jockey diz que, inicialmente, houve equívoco no preenchimento da planilha, com inclusões indevidas relacionadas à prestação de contas da Rouanet. Em 21 de agosto, o Departamento de Patrimônio pediu mais documentos e alertou "que eventual nova juntada de documentos impertinentes ao caso será interpretada como má-fé processual".
Em 2 de outubro, o Jockey enviou novamente cadernos com centenas de páginas físicas. Dessa vez, porém, sem nota fiscal ou prova de pagamento, segundo o DPH. As planilhas tinham gastos gerais, que incluíam folha de pagamento de funcionários, contratação de serviços de terceiros (como oficina de origami e ambulância para as corridas de cavalos) e compra de materiais diversos (como R$ 2.394 em 10 kg de açúcar da marca União, cujo quilo geralmente custa menos de R$ 10 em mercados em São Paulo).
"Documentos que, novamente, nada esclarecem quanto à destinação dos recursos auferidos com a TDC″, segundo o Departamento de Patrimônio aponta para a Controladoria.
O DPH rejeitou a prestação de contas do Jockey e enviou os documentos para auditoria da CGM, que avaliará se houve descumprimento, parcial ou integral, das regras de uso de recursos da TDC pelo Jockey. O clube pode levar multa e até ter de ressarcir o Município integralmente pelos R$ 61 milhões obtidos pelo programa.
"Até agora, o Jockey demonstrou tratar com chacota e descaso o Departamento do Patrimônio Histórico e o uso da Transferência do Direito de Construir (TDC), ao mandar esses documentos que não prestam contas do uso de R$ 61 milhões no restauro do bem tombado", apontou o DPH ao Estadão.
Jockey diz estar à disposição para prestar contas
Em nota, o Jockey Club diz que a CPI será uma oportunidade para dar "transparência às contas". Acrescenta estar "à inteira disposição para apresentar todas as planilhas, notas fiscais, contratos e relações com fornecedores dos últimos anos, bem como relatar as diversas e infrutíferas tentativas de conciliação com o poder público municipal, fatos que aumentam a indignação da atual diretoria".Sobre os recursos da TDC, aponta que já enviou "o Relatório de Despesas de Manutenção e Preservação do Patrimônio (2019 a 2024) que apresenta os valores aplicados exclusivamente na preservação, conservação e manutenção das áreas tombadas".
"Importante frisar que os gastos com pessoal técnico, insumos, serviços de limpeza, máquinas, equipamentos, reparos, monitoramento, dentre outros, são indispensáveis e indissociáveis para a preservação e conservação patrimonial, evitando danos estruturais e maiores custos de restauração futura", acrescenta.
Prefeitura e Jockey acumulam brigas na Justiça
A relação do Jockey com a Prefeitura é marcada por disputas judiciais. O Município diz que o clube deve R$ 842.877.418,93 ao município em decorrência da inadimplência de impostos. Segundo a gestão, são R$ 507 milhões em débitos de IPTU, R$ 298 milhões de ISS e R$ 38 milhões de outros tributos.O Jockey contesta os valores e questiona com ações na Justiça a cobrança de IPTU no terreno.
Desde ao menos 2023, o prefeito Ricardo Nunes (MDB) tenta utilizar a dívida para desapropriar o terreno do Jockey e transformá-lo em um parque. O plano da área verde pública foi inclusive aprovado na Câmara Municipal naquele ano, sob tutela do então presidente do Legislativo, Milton Leite (União).
Em 2024, os vereadores também aprovaram lei que proibia apostas com animais na capital, medida que impactava diretamente o Jockey. O Tribunal de Justiça de São Paulo, no entanto, avaliou que a ação era inconstitucional e derrubou a legislação.
Segundo o Jockey, a CPI vai expor "a tentativa nefasta por parte do prefeito Ricardo Nunes e de sua base aliada, movida por interesses ainda obscuros e pela intensa especulação imobiliária, que tenta apagar a tradição equestre e cultural do local".
Estadão
https://www.estadao.com.br/sao-paulo/investigacao-contra-o-jockey-inclui-suspeita-de-uso-de-subsidio-publico-com-aula-de-origami-e-acucar/





